Uma História Violeta


por Rosangela Paulino


Quem não sabe o que é a vida, como poderá saber o que é a morte?

Confúcio

Segundo dados do Anuário de Segurança Pública de 2020, todos os dias no Brasil, 217 famílias passam pela angústia de ter um ente querido desaparecido. Apenas no ano passado, 79.275 pessoas desapareceram no Brasil. Um número que, apesar de assustador ainda encontra pouca divulgação nos meios de comunicação.
Os desaparecimentos, de acordo com o Observatório do Terceiro Setor, são classificados de três formas: voluntário (fuga do lar devido a desentendimentos familiares, violência doméstica ou outras formas de abuso dentro de casa), involuntário (afastamento do cotidiano por um evento sobre o qual não se possui controle, como acidentes ou desastres naturais) e forçado (sequestros realizados por civis ou agentes de Estados autoritários).

Assim, reabro aqui a história de vida de mais uma das flores do meu jardim. Mulheres especiais às quais atribui nome de flores para expressar sua singela beleza e também guardar suas identidades. Hoje compartilho a história de Violeta e Zé da Enxada. Uma história de desaparecimento que entrou para as estatísticas e nunca foi resolvida. História narrada por Margarida, que no auge dos seus quase 90 anos (ou mais, pois não sabe ao certo quando nasceu) viu de perto esse trágico encontro entre Violeta e Zé contada bem assim, do jeito que vou descrever. Vale lembrar que essa história faz parte das narrativas orais que surgiram durante minha pesquisa de campo para o doutorado, em 2010. Uma etnografia pra lá de bonita e que revela mais do que as palavras falam.  E foi assim que Margarida, sempre pronta para um dedinho de prosa, começou a me contar:

Amor de pobre é amor doido mesmo. Que arrebenta com tudo. Quebra a gente por dentro e deixa doidinho, desesperado por um chamego, um aconchego gostoso, bem safado. Daqueles que “arrupeia” da cabeça aos pés e deixa o caboclo sem chão. Tantã, tantã. Mas tão doido que é capaz até de matar quem bulir com esse amor. É assim, sim. Tô dizendo. 

Por causa disso tudinho, de mal de amor que seu Zé da Enxada matou a mulher dele. Coisa estranha, ninguém nunca achou o corpo dela. Deu polícia, investigador, família que veio atrás e nada. Ninguém sabe. Mas que ele matou, matou. Isso ninguém duvida e ele não nega. Deu cabo. Ela sumiu. Puf! Desapareceu da história.

Tem até quem jura que já viu ela, a formosa Violeta, vagando pela noite sem destino. Alma penada, sem sossego. Rezou-se muita missa, mas de nada adiantou. Só vai ter sossego quando encontrar o corpo e dar enterro cristão, decente. Mas já perdemos a esperança, isso já vai pra mais de 50 anos e nada do Zé falar, de dar o endereço de onde desfez do corpo da difunda flor. Tem mais jeito não. Eu era mulher nova quando isso aconteceu, tinha lá meus trinta e tantos anos. Agora já tô no bico do corvo e nada!  Só tem lembrança disso nós, uns poucos que sobreviveu a esses duros anos. Uns dez ou menos de nós. Mas a história não morre. Enquanto estivermos aqui, a Violeta viverá. E o Zé ainda tá aí. Mudou do Curiangu, como todos nós, mais ainda tá aí. Nem o diabo dá alívio pra ele.

Mas se quer saber da história mesmo, de verdade, vá procurar por ele. Seria até um favor pra gente se alguém conseguisse desvendar essa história. Mesmo com o tempo é curioso demais, ninguém dá sumiço assim no outro sem que o tempo não dê conta. Um dia alguma coisa parece. O capiroto se encarrega de fazer alguém tropeçar no fio que tudo irá revelar. Ele é danado e não aceita ninguém mais esperto que ele. Isso não mesmo. Então dá jeito de resolver essas tramas pra não ficar de bobo. É ruim enganar o capiroto. Dá certo, não!

Bem, não sei se o Zé vai falar, não prometo isso não, mas vai lá. Afinal não custa tentar. Ele é matuto, turrão assim que nem nós. Mas fala pouco, não gosta de prosa solta e depois do acontecido é só da roça pra casa e não recebe ninguém. Agora tá velho, que nem eu. Mais ainda cuida das plantas do redor da casa. Tá bem durinho o danado. Mas vai lá, quem sabe. É só seguir a estrada e quando ver uma casa verdinha desbotada é a dele. Pode ir sem erro.  

E foi assim, seguindo pela estrada e depois de falar com seu Benevides, que caminhava leso pela empoeirada estrada que cheguei a casinha verde do seu Zé da Enxada. Codinome de José Marcelino da Silva. Autor da história que corria aos quatro ventos e fazia as crianças correrem do homem que matou a mulher e desapareceu com o corpo sem ninguém desse conta de onde.  

História que virou lenda. Passados mais de 50 anos ainda era contada. Provocava curiosidade, pois o malvado Zé da Enxada ainda estava vivo. E era assim chamado para diferenciar dos outros dois zés do vilarejo, o Zé Tropeiro, que carreava boi em lombo de cavalo xucro e o Zé Benzedor, que benzia e rezava toda a vizinhança e até gente que vinha de longe. Dizem que já benzeu até doutor que chegou de carro, terno fino e pagou, o que não se paga, com maço de dinheiro e muito topete. Esses dois, diferente do Zé da Enxada, eram pra lá de bom. Nunca mataram nem formiga.

Pois bem, era esse Zé da Enxada, quando ainda moço, que matou a esposa e nunca foi julgado ou preso por não haver corpo e nem sinal de violência que pudesse depor contra ele. Zé, aliás que ao contrário do que poderíamos imaginar, todos juravam que amava a mulher como ninguém. Amor silencioso. De suspiros e olhares. De mimos e cuidados.

A tragédia ocorreu lá na Mata do Curiangu, lá para as bandas das Minas Gerais, antes da cidade tomar conta de tudo. E foi lá que nasceu a doce Violeta, menina que aos 13 anos foi dada em casamento porque a família não tinha como sustentar. Eram nove bocas para sustentar com o pouco que a roça podia dar. Então seu Zé, aos 36 anos enviuvou, precisava de mulher para cuidar dele e da casa. Violeta foi dada de coração pelos pais e seu Zé aceitou. Solidão não é coisa boa pra ninguém e a casa precisava de jeito, tinha os bichos pra criar. Da roça ele dava conta, mais a casa era coisa de mulher. Não queria saber, não.

O fato é que Zé da Enxada nunca tocou em Violeta, não sentia coragem de se aproximar da menina magricela e calada. Era melhor não. Sua primeira esposa tinha tutano e ainda assim morreu junto com o filho ao parir, então imagina uma menina magricela dessa! Não aguentava, não. Deixou pra lá. Deixo Violeta só da casa a cuidar. Era assim que Margarida descrevia esse estranho amor e foi ela mesma a parteira que tentou acudir a mulher e o filho do seu Zé. Criança atravessada, socorro demorado. Não deu sorte. Perda triste.

Cheguei na hora certa. Seu Zé da Enxada estava cansado de calar. Queria falar. Queria contar o que realmente aconteceu com Violeta. Queria, mas queria muito que todos pudessem ouvir o que ele vergonhosamente escondeu por tanto tempo. Há muito tempo carregava esse segredo consigo. Vergonha que estampava sua cara e gritava alto cada vez que alguém se aproximava ou pior ainda, quando alguém sem relutar se virava ao vê-lo passar. Era ora de se livrar dessa amarga companheira de tantos anos. Já estava velho, queria morrer em paz.

Recebeu-me com um misto de alívio e desconfiança. Perguntou se eu tinha carteira que provasse quem eu era. Queria falar com gente séria, profissional e não com mais um curioso qualquer. Por sorte sempre que viajo carrego a carteira de identificação de jornalista e a da universidade, a funcional, ou seja, tudo que possa usar se precisar. E ali precisei. Senti o alívio que aquele senhor centenário sentiu ao olhar da foto do documento para mim. Quase sorriu. 

Depois desse primeiro contato me fez prometer que só contaria a sua história depois que ele morresse. E afirmou com solene profecia que não ia demorar. Que antes do ano encerrar podia procurar saber que qualquer um ia confirmar que ele tinha partido dessa pra melhor. Ou pior quem sabe! Tudo dependia da misericórdia de Deus e o braço sagrado de Nossa Senhora. Santa a qual tinha respeito de devoção. A imagem em um canto da sala não o deixava mentir.  

Era o mês de junho, portanto muito pouco para o final do ano e ele ainda aparentemente forte com os seus 90 e muitos anos, conforme disse. Eu queria fazer várias perguntas, mas algo me fez calar e simplesmente concordar. Tirei até papel de autorização do uso da história, expliquei que era pesquisa acadêmica e precisava de autorização e dei para ele assinar. Era letrado. Leu, assinou e guardou uma cópia dobrada dentro do bolso mais satisfeito ainda. Mas imagem de retrato, como disse, não deixou tirar. Fotografia é obra do capiroto, prende a alma. Não tinha nenhuma, pois queria descansar em paz. Aí sentou calado, respirando com calma, o olhar se perdendo aos poucos na paisagem sombria e finalmente contou o que houve com Violeta. Bem assim.

Violeta foi meu foi dada pelos pais que não tinham condição. Não condeno, não. Aqui é assim. Sempre foi. Gostei da menina e era um modo de ajudar. Era menina boa de serviço, fazia de um tudo. Ficamos juntos por muitos anos. Sempre quieta, encolhida num canto. Eu puxava prosa, dada presente, tentava animar, mais nada. Até que um dia cheguei da roça e Violeta não estava. Estranhei. Procurei. Chamei. Nada. Fui na casa dos pais e questionei. Nada. Fiquei acabrunhado, sem saber o que fazer. O causo é que os dias foram passando e eu sem notícias. Foi quando eu já nervoso sem saber da menina, encontrei um conhecido na venda do seu Lázaro, e ele cheio de picardia me perturbou tanto com perguntas que eu não sabia responder, que eu disse: matei, pronto, eu matei a Violeta. É isso mesmo, matei e enterrei pra ninguém mais ver.

Eita, moça! Esse homem saiu correndo que nem louco e gritando que eu matei a menina. Aí minha vida virou um inferno. Todo mundo queria saber se era verdade, onde estava o corpo e eu não dizia. Não dizia por que não tinha o que dizer. Era mentira. Mais eu não queria dizer. O tempo foi passando e eu sem saber da Violeta e nem como consertar isso. A história ganhou fama, eu perdi meus poucos amigos e até hoje se fala nisso. Acho que mesmo se eu dissesse que não matei, ninguém acreditaria. Todos queriam ver o corpo. Ver a Violeta. Até eu.

O fato é que depois de quase meio ano do acontecido o próprio pai da Violeta veio me ver e contou que a filha que tinha fugido primeiro pra capital e depois que ia morar no Ceará com uns familiares. Uns parentes que depois de muito tempo tinham dado notícias pra avisar que uma das tias estava em Belo Horizonte para tratamento de saúde e assim que melhorasse ia de volta pro Ceará. Queriam alguém pra cuidar da mulher e assim que Violeta ficou sabendo tratou de fugir e ir atrás da tia. Eita, que minha cabeça ferveu. Aí sim eu quase matei um. Eu sofrendo e pagando caro pelo que não fiz e a danada de endereço certo.  

Como não sou homem de ser passado pra trás, fiz o pai me dar o endereço e fui pra capital procurar por ela. Achei. A menina quando me viu, tremia mais que vara verde em dia de tempestade. Fiquei com dó. Disse a ela que podia ir embora, que fosse com a tia pro quinto dos infernos de onde ela tinha vindo, mais fiz prometer que enquanto eu tivesse vivo ela não voltaria e nem mesmo mandaria notícias para os pais. Que ela morria ali. De verdade. Só assim mantinha minha honra. E assim ela fez. Pediu desculpa pelo feito. Disse que apreciava minha pessoa, mais tinha sonhos maiores do que viver na roça. Entendi. Escreveu uma última carta para os pais e se foi. Se tá viva o morta, não sabemos. A família com o tempo também se mudou. Foi-se embora lá pro Ceará.

Só sei moça, que eu tomei foi um tremendo pé na bunda, me desculpe o palavreado, mais foi isso mesmo. Não teve morte alguma. Se alguém morreu, esse alguém fui eu. Pronto. Agora pode contar e quem quiser acreditar, que acredite. Mais essa é a verdade sobre a morte de Vileta. Esposa desaparecida e nunca mais encontrada.

Era o fim menos trágico de uma história. Senti tristeza pelo seu Zé da Enxada. Carregou o estigma de assassino a vida toda por falta de coragem de assumir que a esposa o abandonou. Violeta foi dada como desaparecida. A família aceitou, carregou essa mentira e anos depois também desapareceu da vida do seu Zé e do povoado do Curiangu.

Voltei da casa de seu Zé triste, pensativa. Mas mantive a promessa. Só contei sua história depois que ele morreu. Não foi no final do ano de 2010, mais no início de 2011. E quando contei a verdade para Margarida, ela deu uma sonora gargalhada e disse: – Velho gaiato. Pensa que me engana. Ninguém vai acreditar. Eu não acredito. Ele queria era tirar esse peso antes de morrer. Mais ele que se acerte lá com Deus ou com o Diabo. E a Violeta, que descanse em paz.

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Atualmente, questões importantes permanecem em aberto e ainda não é possível afirmar quantas famílias seguem esperando por seus entes queridos. Desde 2018, muitos estados e o DF passaram a informar no Anuário o número de pessoas encontradas.

Um maior número de estados passou a organizar e reportar registros de desaparecimento. E, finalmente, em 2019, uma lei federal estabeleceu a Política Nacional de Busca e o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.

Serviço:
Contato imediato: em caso de desaparecimento de alguém, a família deve comunicar à polícia imediatamente. Não se deve esperar 24h, como muitos acreditam.

Prevenção contra desaparecimentos de crianças: é indicado que a criança tenha um documento de identidade (RG) desde cedo. Também é importante ter fotos 3×4 da criança atualizadas a cada ano.

Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP): Para auxiliar nas buscas, a 4ª Delegacia de Polícia de Pessoas Desaparecidas divulga na internet a foto da pessoa desaparecida que for enviada ao departamento policial.

PLID (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos): Para saber mais informações de como se prevenir ou reagir em um caso de desaparecimento, o PLID também disponibiliza materiais de apoio (como cartilhas, apresentações e artigos) e links úteis sobre o tema. Para um contato direto, acesse a página do PLID no Facebook.

Fonte: Observatório do Terceiro Setor
https://observatorio3setor.org.br/noticias/perigo-ignorado-todos-os-dias-217-pessoas-desaparecem-no-brasil/ – acesso em 12 mar 2021.


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